REAL PARQUE (JOAQUIM JOSÉ DA SILVA XAVIER)

– Qual o motivo da angústia, Milena?

– O Real Parque, tia, é literalmente um parque real…
– Há como ser diferente, Milena?
– Chacota, porque ignora a diversão que ali acontece, tia.
– Então me coloque a par, Milena.
– A cidade cinematográfica Cinart, tia, fora adquirida pelo Real Parque, sendo seu propósito explorar roteiros, que seriam vividos pelo próprio público; a trama seria desenvolvida a como se fosse um fato verdadeiro.
– Encenariam.
– Encenariam o quê, tia? Viveriam os roteiros escritos como se fosse realidade.
– Roteiros água com açúcar.
– Roteiros água com açúcar o quê, tia? A direção do Parque sabia que roteiro água com açúcar não atraía ninguém. Para que a senhora melhor absorva a ideia do entretenimento do Real Parque, já em pleno funcionamento, o último roteiro vivido foi “O Estuprador da Meia-noite”. O número de público ultrapassou a casa dos quatro mil.
– Paga-se para participar disso, Milena?
– O equivalente ao preço de uma geladeira nova, tia. O ingresso dá direito à acomodação e refeição durante os três dias de diversão. “Espetacular Cinema Vivo”. Sentem-se astros, tia. O parque é imenso. Seus roteiros bem escritos são de pouca complexidade, até mesmo para preservar a estrutura do parque. Seccionam-no e, cada lote, em número de 4, desenvolve o roteiro proposto. No roteiro em voga: “O Estuprador da Meia-noite”, o lote 3 foi o vencedor. Houve 28 estupros, e o suposto malfeitor ‘vacilão’ fora abatido pela “Polícia”. Tal equipe recebeu o prêmio de 30% do faturamento da Parque. Há vários patrocinadores, tia.
–Fatos reais?
– Sim, tia.
– O que as autoridades dizem sobre isso, Milena?
– Existe ruidosa discussão a respeito, tia, mas o caso é que o direito do cidadão deve ser respeitado. Pois, de igual modo, como qualquer outra diversão, ninguém é obrigado a participar… Coisa pior acontece nos estádios de futebol não é, tia? Local exclusivo para descontraído lazer. No entanto, tia, o motivo de minha aflição e angústia, e até mesmo tristeza, está relacionado com a proposta do próximo roteiro que será vivido.
– Brinquedo assassino?
– Não, tia. “Inconfidência Mineira”. Destacará o julgamento dos inconfidentes e, em seguida, o líder da fracassada conspiração, Joaquim José da Silva Xavier, será enforcado. Conspiração, tia, que tinha como objetivo dar um basta na exploração da Coroa Portuguesa, domínio sob o qual viviam. Li o roteiro, tia. Encontra-se disponível na internet para quem quiser participar.
– Então, Milena, a sua aflição e angústia e até mesmo tristeza são provenientes do fato de que, no Real Parque, palco de descabida diversão, será “encenado” o trágico desfecho do mártir Joaquim José da Silva Xavier, que será literalmente enforcado.
– Isso, tia.
– Se não me falha a memória, Milena, Tiradentes foi traído.
– Foi, tia.
– Agora imagine você, Milena, se nos dias atuais pessoas tidas como sábias, intelectuais, cursadas e até mesmo superiores se vendem, imagine, naquela época, num mundo pouco civilizado?
– É verdade, tia… A propósito, tia, a existência do “Bilhar Azul” lhe falha na memória?
– Claro que não, Milena. Eu era garotinha e o Clube já existia.
– Viu o Rubinho nascer?
– Rubinho Lelé?
– Sim, tia.
–… Qual seria a idade do Rubinho Lelé? 32 anos? Portanto, vi o sujeito nascer. Eu era garota, deveria ter uns 8 anos idade. Portanto, vi nascer sim. Já nasceu meio “lelé”.
– Pois bem, tia. A turma frequentadora do “Bilhar Azul”, de olho no prêmio, participará da trama. O ônibus que conduzira os participantes para a capital, já se encontra no nosso município. Os inconfidentes, trajados de acordo com a época, antes de partirem, darão um volta na cidade.
– O tal do Joaquim Silvério dos Reis também desfilará, Milena?
– Não, tia. A encenação destacará os companheiros de Tiradentes fugindo, e o líder da conspiração, o próprio Tiradentes, sendo preso e posteriormente executado.
– Ainda bem, Milena. Caso o xodó da Coroa, o traidor maior, o senhor Joaquim Silvério dos Reis desfilasse, receberia de mim uma coça de vassouradas. Ninguém poderia apartar, pois seria ‘encenação’.
– Contaria comigo, tia!
–… Esse preparativo, Milena, explica a gritaria que escutei durante essa madrugada?
– Não posso negar, tia. Foi na residência dos Alcântaras. Rubinho Lélé representará Tiradentes.
– Meu Deus, Milena! Isso não pode acontecer! O Rubinho não bate bem da cabeça.
– Foi a causa do ríspido desentendimento entre os Alcântaras e os inconfidentes, tia.
–… Mas o que é isso, Senhor?! Aplausos e disparos de foguetes?!
– O desfile, certamente, já começou. Vamos observar do portão, tia.
–… Meu Deus… O Rubinho Lelé vem à frente sorridente. Bonitão trajado de alferes.
– No entanto, tia, rogarei: Perdoai, oh Deus, não sabe o que faz.
–…
– Controle-se, tia.
– Não posso conter as lágrimas, Milena. Não será uma encenação.
– Olhe em volta, tia, há muitos pacíficos curiosos. Aposto que não foi diferente num horário qualquer do dia 21 de abril de 1792. Portanto, nada também podemos fazer.

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