QUEDA POR MORFEU

– Tia, graças a Deus! Graças a Deus, tia!

– Qual o motivo para tamanha gratidão, Milena?
– Oito pessoas conseguem libertar um ente amado do tormento, tia. Então os agradecimentos reiterados são extensivos ao esposo, aos sogros, aos irmãos e aos pais de Claudinele. Os dois filhos adolescentes da desmiolada, coitados! Sofriam sem conseguir entender o motivo do absurdo fascínio da genitora.
– Fascinada com o quê, Milena?
– Devota da morte, tia. Bastaria um empurrãozinho para que, ‘a sem juízo’ se atirasse nos braços de Morfeu.
– Obcecada?
– Obcecadíssima, tia. Então os familiares, recorrendo a mais uma tentativa, contrataram um ator para ajudá-los. Assim, estando Claudinele numa loja do shopping, de repente avista no braço de um homem uma tatuagem semelhante à que possuía. O belo trabalho destacava um abismo e anjos rondando.
– Jesus!
– Dirige-se a ele. Elogia a estampa, e exibe a imagem idêntica que enfeitava o seu antebraço direito… Apesar do pesar, tia, Claudinele tinha sorriso cativante... No entanto, óbvio que desnecessário recorrer ao natural encanto que possuía para cativar o ator. Simpatizando-se, deixam a loja e vão estender conversa a uma das mesas de certo espaço. O assunto, não outro: imenso desejo de abraçarem Morfeu. No tocante a ela né, tia? Estudadamente o ator menciona a estupidez de uma amiga. Carregava também consigo aquela agradável tatuagem. No entanto, havia conhecido uma pessoa que lhe mostrava uma visão amistosa para encarar o fardo da vida. Segundo tal pessoa, ainda que ela não fosse o que era, aquela tatuagem representava ingratidão para consigo e para com as pessoas que a rodeavam.
– De acordo, Milena.
– Ensinava-a, portanto, a ser grata como tudo, até mesmo com o simples ato de remover poeira do móvel. Riram com a idiotice, tia. E a prosa continuou. Soprando a fumaça do cigarro, Claudinele diz que conhecia dois fascinantes lugares: o cais distantes, a metros dali, e o “Além Lago”, um pouco afastado. Retruca o interlocutor que também conhecia o “Além Lago” e reafirma que era de fato fascinante. Todavia distante. A obcecada suicida pondera dizendo que o cais não. Toparia? Ele suspira. Conversam um pouco mais e, momentos depois, dois luxuosos automóveis estacionam no pátio abandonado da companhia que administrava o cais. Estava deserto. Claudinele, animada, já desce do veículo vestida no seu inseparável traje: um colete contendo pedras. Conta para ele, como também diz que saltariam nas águas abraçados.
– Como é, Milena?!
– O fogo que ela sentia pela morte, tia, era imenso. Semelhante à de animal no cio.
– Meu Deus!
– O ator não esperava por aquilo. Pensativo, caminha para o cais propriamente dito. Observando as águas, ele confidencia que a sua imagem póstuma pouco importava. Porém, a reputação dos familiares ficaria estremecida. Pois, qual seria o julgamento? Dois automóveis abandonados e eles desaparecidos… No mínimo, seria um casal de amantes desgostosos que dera cabo da vida. Aquilo magoaria profundamente esposa e filhos. Já no “Além Lago” não haveria tal suspeita. Claudinele reage desapontada. Todavia, aceita a justificativa. E exige: na manhã do dia seguinte estariam no “Além Lago”.
– Louca, louca e louca, Milena!
– Pois é, tia. “Além Lago” resumia-se a uma faixa de areia e uma volumosa bacia. A outra margem pantanosa era tocada por um céu eternamente cinzento. Havia uma antiga ponte de madeira por sobre as águas que ligava os dois lados. Carecia de notícia, tia, ter alguém conseguido atravessar o lago a nado, a remo ou motorizado.
– Por que, Milena?
– Redemoinhos tragavam o invasor, tia.
– O que procurava.
– Isso.
– Continue, Milena.
– O dia já havia raiado a bom tempo e eles lá já estavam. O ator pergunta a Claudinele se tinha realmente vontade de conhecer o outro lado do lago. Nega. O que realmente desejava era deixar o lado que ocupava.
– Meu Deus! Que ingrata com o sopro da vida que Deus lhe deu, Milena. Pelo que se pode observar, Milena, gracioso sopro. Bem-aventurados os que encaram a vida por birra, Milena.
– Amém, tia!
– Continue, criatura.
– No ínterim, surge um homem… Rotineiro, tia. Este vestia paletó e gravata. Aproxima-se das águas, se desfaz do paletó e da gravata, retira os sapatos e se atira. Os olhos de Claudinele brilham… O desgostoso homem nada. Nada e desaparece. Encorajada, Claudinele senta-se nas areias e, eufórica, passa a retirar os sapatos. O ator senta-se ao lado dela. Retira um chaveiro do bolso e exibe a mensagem gravada: “Lembre-se de mim.” Incansável presente da esposa, dos pais, dos filhos, dos irmãos, dos parentes e dos amigos. Eram o seu mundo. Tudo o que pediam para que não se esquecesse deles… Mas havia chegado o momento… Argumento, tia, porque sabia que ela tinha uma coleção daquele lembrete.
– Ela tinha uma coleção daquele lembrete?
– Tinha. Ela, meditando; ele retira os sapatos; ela indaga se os deixaria. Responde que sim. Segura-o no braço e pede para que não os deixasse, pois ele era importante para eles. Com lágrimas nos olhos, Claudinele ri. Olha para as águas e diz que ela era importante para os pais, para o esposo, para os filhos, para os irmãos, para os parentes e para os amigos. Eram também importantes para ela. Era o seu mundo. Os anjos que aguardassem o dia da sua involuntária e sentida partida.
– Desiste da loucura.
– Desiste, tia.
– Bonito, Milena.
– Agradecida, tia.

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